Para os santos de casa que não fazem milagre

Gui Melo
5 min readSep 10, 2021

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O filho do vizinho é sempre mais verde

Eu sou uma dessas pessoas que não acredita em vida eterna.

Viver para sempre, ter certezas e garantias são desejos dos homens, quase um fetiche. Mas se a mera certeza de que eu vou acordar amanhã me faz viver o hoje com indiferença, imagina se eu tiver certeza de que vou ter vida para sempre? Nenhuma pressa, nenhum cuidado, nada de especial.

Para ter um “bom”, é preciso de um “ruim”; para ter um “valioso”, é preciso um “corriqueiro”… A vida com garantias tira estes contrastes das coisas, e enche a vida de tanto faz.

Outro dia, eu estava ouvindo um canadense dizer que morar no Canadá é muito bom, mas que isso faz com que todos se acomodem e não queiram melhorar. O bom deles é algo garantido, não se espera menos do que aquilo, sabe? É meio que obrigação, o mínimo.

Eu sou uma dessas pessoas que acredita em ciclos. E que a vida é outra depois de 1kg de sal.

Quando eu era criança, eu perguntei para um certo adulto por que ele exaltava tanto um primo meu; ele respondeu que era porque meu primo ia bem na escola, não respondia os adultos (mentiiiiira), ajudava em casa… (Tudo coisas que eu sempre fazia, mas… eu era santo de casa.)

Ouvia muito que as coisas que eu fazia não eram mais do que a minha obrigação. Podia ser uma tarefa doméstica, uma atividade da escola ou qualquer-coisa. É o mínimo que espero de você.

Se eu reclamasse de algo, ouvia aquele clássico “para de reclamar, na minha época…”, e minha dor era ignorada e invalidada. Meu “eu” não tinha espaço nem muita importância, era sempre sobre o outro.

Que mimimi! É assim com todo mundo” alguém me disse. E, sim, talvez seja. Tanto que é uma expressão popular. Mas eu sou uma dessas pessoas que não acredita que as coisas têm que ser eternas (acredito que elas podem mudar).

O santo de casa quando cresce

Mais do que traumas, estes eventos foram ensinamentos de como eu lido comigo mesmo, como eu me sinto, como eu me trato. Estes padrões contribuíram a formação da minha auto-imagem: um tanto faz.

Eu passei muitos anos me achando insuficiente. Sentia que minha presença era um incômodo. Até para atravessar a rua, eu sentia que estava atrapalhando o motorista — mas quando eu estava dirigindo, sentia que tinha que parar para todos atravessarem. Eu sempre tinha que ceder.

Desisti de muitas entrevistas de emprego porque quando eu via que tinha outros candidatos competindo comigo, eu me sentia sem a menor chance de ser melhor do que eles. Eu nunca fui melhor do que ninguém, por que seria dessa vez?

Escrevi textos e livros e os deletei completamente porque não os achava bons o bastante. Quer dizer, até eram bons, mas nada demais.

Machine learning: aprender e replicar

Eu estava replicando (no automático, sem perceber) tudo aquilo que eu aprendi na infância.

Mas este texto não é um desabafo e nem é para me fazer de coitadinho. Saber que você não está sozinho nesta (considerando que você também seja santo de casa) tem seu conforto, mas também não é para isso que compartilhei uma página do meu diário.

Este texto é para te convidar para uma jornada de autoconhecimento. Qual é a sua autoimagem? Existe algo que você gostaria de mudar em si? Quais eventos da infância te ensinaram a se autossabotar?

Merchanzinho: tema do meu novo livro “Dança na tempestade interior — Autoconhecimento, ansiedade e desapego”. Ele segue o conceito da série “De: Eu Para: Eu”, mas sob uma perspectiva bíblica mais… digamos, útil.

Os segredos dos colecionadores do prêmio Nobel

Há muitos problemas na tradução dos textos bíblicos e nas interpretações que elas provocam. Eu olho para aquelas histórias todas e penso “o que eu faço com esta informação? Como isso me ajuda no mundo de hoje?”. Uma das traduções mal feitas é o convite de Deus a Abraão para sair da terra dele.

Lech lechá é o nome da porção que trata deste convite. Parece um convite para uma religião, mas é um convite para o autoconhecimento. É o que o budismo, o hinduísmo, o taoísmo, a psicologia e os grandes filósofos falam há milênios: conhece a ti mesmo.

Literalmente significa “vai para você mesmo”. Sai das (auto)definições que a sociedade te ensinou, que teus parentes te ensinaram e que teus pais te ensinaram. Entre em si e vá para uma terra que eu te mostrarei.

Esta terra é a própria essência, é o “eu” sem as definições que os outros me ensinaram a ter sobre mim mesmo.

A consequência de aceitar este convite é ser uma bênção, é ter a liberdade de ser quem eu (realmente) sou. É ter inteligência emocional.

Autoconhecimento para não depender de ninguém

Inteligência emocional não é controlar as emoções. Inteligência emocional é se conhecer ao ponto de saber quando evitar uma briga, um vício, um padrão. Eu me conheço e sei que no fim do dia estou esgotado e me estresso com mais facilidade, então, vou entrar nessa DR na parte da manhã.

Quando eu não me conheço, eu fico buscando (inconscientemente) no outro o que falta em mim. Me submeto e permito coisas absurdas… Crio expectativas, me frustro, acumulo decepções, acabo carregando um peso comigo mesmo, vivendo uma vida sem sentido.

“Algumas pessoas sentem a chuva, outras, apenas se molham”
— Bob Marley

Autoconhecimento me permite ressignificar e melhorar muitas coisas. Não é porque Abraão nasceu estéril que ele não pôde ter uma família = Não é porque eu nasci e tive uma infância pobre (do ponto de vista psicológico), que eu não vou poder me tornar confiante e seguro de mim mesmo.

Eu sou uma dessas pessoas que não acredita no para sempre.

Eu acredito que nem todo santo faz milagre, mas que todos podem sentir a chuva da vida.

PS. meu livro “Dança na tempestade interior” está em fase de revisão e sem data para publicação. Se quiser ler, deixa um comentário aqui ou me segue nas redes sociais que eu aviso quando estiver pronto.

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Written by Gui Melo

Um introvertido compartilhando as lições que não ensinaram na escola, mas que são essenciais para conviver em paz com a própria cabeça 💛

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